Casa dos Rosa

No centro de Canoas, – cidade da região metropolitana de Porto Alegre, cortada por rodovias e metrô, repleta de indústrias, comércios e universidades – uma casa implantada em uma grande área verde, alheia ao turbilhão à sua volta, insiste em nos levar a outro tempo, tempo anterior a própria cidade que a circunda. A Casa dos Rosa, como é conhecida pelos canoenses, localizada sobre uma colina, é resquício do aprazível e bucólico lugar de veraneio que existiu junto à pequena estação da primeira linha de trem implantada no Rio Grande do Sul que ligava Porto Alegre a Novo Hamburgo em 1874 (hoje, uma linha de metrô). Não há dados históricos precisos, mas alguns estudos indicam que foi o próprio empresário e engenheiro inglês John Mac Ginity, que veio para o Brasil para investir na implantação de ferrovias, que resolveu construir a casa que viria a ser conhecida Casa dos Rosa. A referência não é a ele, mas às atividades profissionais e humanitárias desempenhadas pelo Dr. Décio Rosa, membro da segunda família que adquiriu o imóvel em 1893 e a habitou até 2009, ano em que a propriedade foi transferida para o patrimônio da ULBRA, Universidade Luterana do Brasil.

O destino desta casa por pouco não foi o que, infelizmente, se tornou norma em nossas cidades: demolição e substituição por grandes edifícios. Salvou-a a circunstância de uma grande crise econômica da ULBRA, a subsequente penhora para pagamento dos impostos federais e a ação rápida do prefeito Jairo Jorge, antecipando-se ao inexorável leilão e tombando-a. Criado o impasse – o desinteresse comercial por um imóvel tombado – o prefeito gestionou e conseguiu que a Casa fosse transferida para o patrimônio da União e, em seguida, cedida ao município para uso cultural.

A sensibilidade do então prefeito para a história e cultura de Canoas abriu caminho para um projeto de grande potencial para a cidade. A antiga estação em frente à Casa dos Rosa, que deu origem à cidade e deixou de ter utilidade com a implantação do metrô, já havia sido transformada em espaço cultural. A Universidade La Salle é lindeira há um bom tempo e, próxima dali, a Vila Mimosa foi salva da demolição em acordo com a construtora que a transformou em espaço cultural público. O que começou como proteção do passado, trouxe uma nova perspectiva para o centro de Canoas: museus, teatro, parque e universidade passaram a formar um polo de educação e cultura, gerador de novo patrimônio material e imaterial. Estamos falando de indústria criativa, de turismo, de enriquecimento cultural, de trocas de experiências e de desfrute das belezas da natureza, da história e da arte.

A Casa dos Rosa não tem as características que possam identifica-la com a chamada arquitetura erudita que nesta época era conhecida como arquitetura eclética e tinha em Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul obras significativas. Ela foi construída para ser uma casa confortável, com bastante rigor técnico em sua construção, mas sem pretensões arquitetônicas mais elaboradas. Entretanto, seu proprietário e construtor não deixou de se preocupar em dar um destaque especial à fachada, que era visível desde a linha de trem. Nela, acrescentou uma varanda ricamente adornada com lambrequins de madeira.

Se o olhar sobre a casa não vê mais valor do que histórico, sua implantação no terreno, elevado sobre a cota da linha de trem, mantendo uma boa distância desde esta mesma linha e a densa mata ao seus fundos, permite ver uma intenção de criação de um lugar muito interessante do ponto de vista paisagístico. Da mesma forma, um terraço-mirante indicava o desfrute de um horizonte longínquo, chamando a atenção dos passageiros do trem, que viam ali uma aprazível casa de campo.

A casa foi construída em alvenaria e a maioria de seus entrepisos eram de madeira. O conforto térmico era garantido pelo afastamento dos pisos do solo, através de porões ventilados. Apenas na cozinha, sanitário, terraço-mirante e varanda foram utilizadas lajes de tijolo em abobadilha com pisos de ladrilhos hidráulicos. A cobertura foi feita com telha do tipo marselhesa, muito comum no Rio Grande do Sul, sobre tesouras e caibros de madeira.

O exame da edificação indicou que ela deve ter sido construída de uma vez só, pois não se encontrou marcas de acréscimos ou modificações; os tijolos até onde se pode ver têm sempre as mesmas dimensões e as esquadrias são uniformes.

Já protegida pela lei de tombamento e destinada a atividades culturais promovidas pela prefeitura de Canoas, infelizmente, em setembro de 2012, sofreu um incêndio que comprometeu a parte superior da casa. Ao final de 2013, foi realizada a licitação do projeto de restauro, vencida pela Kiefer Arquitetos. 

A restauração deste conjunto de 1874, protegendo sua memória, foi vista como uma oportunidade de implantar novos equipamentos culturais e de lazer que o desenvolvimento de Canoas reclama. Além do Museu de Canoas está prevista a implantação do Teatro de Canoas, no mesmo local em futuro próximo. A proposta do projeto foi a de manter a volumetria geral da casa, recuperando suas fachadas, telhados e a varanda ornamentada. A casa vista desde a calçada manteve seu aspecto tradicional, a não ser pelo fato da remoção do antigo acesso e do envidraçamento da varanda indicarem novos usos de caráter público. A medida que vamos adentrando no terreno, vamos percebendo novidades arquitetônicas contemporâneas que dá continuidade à casa na sua parte de trás. Ali temos a marquise que une o museu ao teatro, a nova escada confortável e acessível a todos, e o elevador de acesso ao segundo pavimento, deixando bem claro: a casa foi ampliada e se transformou em equipamento de uso público e cultural. Neste mesmo anexo, para evitar maiores intervenções no prédio original, foi implantado o café e a recepção. A recepção, na verdade, invade a antiga cozinha, onde é amortizada a tensão entre o novo e o antigo. Da mesma forma, os novos sanitários ocupam o lugar da antiga sala de banho da casa. A grande marquise que nasce na parte de trás da casa e se estende até o futuro teatro recebe, abriga e encaminha o pedestre para as diversas funções do complexo cultural.

Internamente, em função da alteração de uso e, consequentemente, de suas novas necessidades, inclusive pela questão de caráter, optou-se por eliminar o entrepiso do hall criando um vazio interno para orientar e organizar a circulação dos visitantes. Uma das antigas escadas de madeira foi preservada e a outra, que levava ao terraço, foi substituída por uma escada de marinheiro de aço corten. O reboco do forro deste espaço, que escondia a abobadilha do teto, foi retirado. Os demais espaços mantiveram seus aspectos originais, mas lajes de concreto foram introduzidas sobre os forros em substituição aos caibros antigos abrindo espaço para a infraestrutura necessária.

A preservação do antigo junto ao novo é um dos temas mais apaixonantes da arquitetura contemporânea. Ela deve ser lição de convivência e harmonia entre saberes e fazeres de tempos diversos, unindo sem ferir, sem enganar, sem mistificar; distensionando o conflito modernista entre passado e futuro.

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Projeto

  • Flávio Kiefer | Lídia Arcevenco

Localização

  • Canoas, RS

Área do terreno / Área construída

  • 12872 m2 | 456 m2

Ano

  • 2014

Colaboradores

  • Desirée Cardoso

Fotografias

  • Fabio Del Re